Duas histórias
A escrava que não era Isaura
Isaura trabalhava, lia, fazia sua caminhada matutina, organizava os afazeres domésticos e delirava entre a realidade e a ficção. Nasceu romântica e a educação recebida na infância lhe transformou numa dama: educada, prendada e culta. Não carregava em si a ambição, percorria seus sonhos mais secretos… Viajava em pensamentos e acreditava em príncipes encantados.
Na escola, ainda jovem foi alcunhada de escrava Isaura, devido ao nome de batismo. Era comparada a personagem escrava Isaura, um belo romance. O livro foi um grande sucesso editorial e permitiu que Bernardo Guimarães se tornasse um dos mais populares romancistas. No livro são contadas as aventuras e desventuras de uma bela escrava branca em busca de sua liberdade. Escrito em plena campanha abolicionista (1875), escrava branca e educada, de caráter nobre, vítima de um senhor devasso e cruel. O autor, nesta obra, pretendia fazer um libelo anti-escravagista e libertário e, talvez, por isso, o romance tenha excedido em idealização romântica, a fim de conquistar a imaginação popular perante as situações intoleráveis do cativeiro.
A bela Isaura, então se casou ainda menina, 15 anos, com um moço abastardo e que ao vê-la pela primeira vez rendeu-se aos seus encantos e casou-se com ela, casta e menina. Nunca foi fácil sua vida, dois anos de matrimônio deu a ela dois filhos, eram tão belos! Do pai, ambos herdaram o espírito de liderança em busca da fortuna. Sentia-se uma mulher escrava, calava-se presa pelas algemas.
Aos 35 anos, cansou de ser apenas uma “Escrava Isaura”, sentiu necessidades de conhecer outros mundos e quem sabe esquecer a alcunha que a acompanhava. Da casa ao trabalho, marido e filhos, que vida medíocre! Sentia-se abandonada pela própria sorte e seus sonhos os via de longe coberto por uma neblina. O marasmo a tornara mais pensante em relação a sua própria vida. A senzala já não lhe bastava, o único homem já não lhe agradava e os filhos se transformaram em homens.
Perdeu a cabeça e saiu por outros lugares. Entrou num cabaré e se vestiu de dançarina, era a mais bela do salão. Abusou da bebida e foi parar num hospital, coma alcoólica. Ao acordar num quarto de hospital, à beira da cama os três homens: o marido e os dois filhos.
Um silêncio tomou conta do quarto, os três a acariciavam entre beijos e abraços como se nada tivesse acontecido. Uma canção, flores e vozes entoadas em coro: — Mamãe, amamos você!
Isaura volta muda ao cativeiro.
A lagartixa e o gato
Descansava na almofada vermelha de cetim, arranjava-se sobre a mesma com graça e modéstia.
A minha vida era mais ou menos plácida. Quando eu não estava debruçada na janela mirando o céu, a sombra das montanhas eu observava o felino que sempre o considerei de fé inabalável. Às vezes eu pensava “ninguém é capaz de suportar a dor alheia, já que é tedioso suportar a própria dor”. E ele “o gato” suportava-me e nos momentos de solidão era o meu único amigo e eu era feliz!
O gato costumava sumir e eu o substituía pela lagartixa! Ela sabia muito bem que tempos atrás o gato havia devorado sua irmã por maldade, mas que eu não tive culpa! Eu era sua amiga e não seria capaz de fingir um sentimento que não tivesse.
Fascinante a inteligência de um réptil! Repeti o treinamento da lagartixa, pois a mesma ia apresentar-se no circo e não foi tão difícil o percurso do adestramento, já que tinha memorizado o treino do ano interior.
O gato fingia-se de sonolento e ficava com um olho aberto e o outro fechado. Abria a boca num bocejo, olhou-nos, empinou as orelhas e de um salto chegou até o circo onde ia acontecer o campeonato.
Observava a alegria da lagartixa e uma vez olhou para mim tão cheio de pena que pareceu haver-me adivinhado, e eu quis pedir-lhe que não comesse a minha lagartixa, ele já havia devorado uma. Se isto acontecesse novamente eu ia castigar-me. Enxuguei meus olhos, senti uma angústia grande, um nó na garganta e chorei.
Enquanto nos olhávamos – eu e o gato – a lagartixa sumiu.
— Gato, vai por ali que eu vou por aqui!
Em poucos minutos retorno e a lagartixa me aguardava.
Olhei para a lagartixa que olhava para mim e indaguei:
— E, então?
— Corri, venci e comi o gato!