Mistério da meia-noite

Pergunto ao motoqueiro do centro de Içara:

– O senhor não pensa em quem precisa dormir? Durmo de três a quatro horas por noite, pois o senhor passa na minha rua de duas em duas horas buzinando sem parar. Todos nós precisamos descansar, pense, por favor! Essa noite acordei, olhei para as casas dos moradores e parecia que todos dormiam, mas pensei: “Impossível dormir com este barulho que maltrata! “Ele me respondeu: “Entendo, sim, escritora! A vida de alguns homens e mulheres passam em rápidos instantes, e outros, talvez, nem durmam à noite, mas adormecem durante o dia”.

Respondi-lhe: “O coração palpita com emoção quando ouço esta fatídica hora da meia-noite me fazendo andar pela casa em busca do silêncio. Algumas vezes escrevo versos, outras vezes fico sonolenta, finalmente durmo. É assim, meu senhor! Os instantes solenes dos sonhos se tornam numa ‘puta raiva’ por quem buzina, buzina, buzina… duas, três, quatro, cinco vezes. Entenda minha aflição! Outra noite sem dormir com as buzinadas saí da cama e fui até o famoso barzinho antigo da minha casa, abri uma bebida para ver se bebendo eu dormia e não ouvia mais o barulho da moto ingrata”.

Ele não demonstrou nem culpa e nem pena de mim, sumiu. Enquanto eu bebia alguns goles, deitada no sofá da sala, me lembrei da lenda do escritor Raymond Chandler: “Que um homem, por princípios, deveria ficar bêbado pelo menos duas vezes ao ano”. Que sorte! Deitei-me e dormi. 

Algumas noites passaram e fiquei tranquila dormindo ao lado dos anjos. Só que noite passada o motoqueiro enlouqueceu de vez, voava pelas ruas e eu aqui de cima ficava espiando com um desejo ultrapassando os limites da minha imaginação, de chegar perto dele e dizer em vez de boa-noite, oh que difícil noite e pregar-lhe uma bofetada naquele rosto de anjo. Afinal vou ter que ir embora daqui ou dormir com os dois ouvidos entupidos com algodão, ou ensurdecer de vez para não reclamar de mais nada nesta vida. Pensei.

Vou escrever para a madrugada passar e descerão dos céus flores redecorando a casa. Lembrei-me de José de Alencar que disse um dia sem conseguir dormir: “Vem de novo, minha boa pena de folhetinista, vamos conversar sobre bailes e teatros, sobre essas coisas agradáveis que não custam a escrever, e que brincam e sorriem sobre o papel, despertando tanta recordação mimosa”.

Só que nesta noite resolvi ficar acordada e enfrentar o guardião da quadra da rua Marcos Rovaris. Desci as escadas às duas da manhã. Fiquei aguardando a sua passagem e começou a chover, e eu já estava ensopada da cabeça aos pés, mas jurei que dali não sairia enquanto ele não passasse na minha frente.

E chegou a hora, parou ao meu lado e disse que havia percebido que eu estava brava por não conseguir dormir bem devido as suas buzinadas, mas que eu iria me acostumar. Continuou falando, sentou-se na calçada, um gesto bom e uma paz em seu coração acabou comigo. E disse numa voz serena: “Sou obrigado a agir assim, senão eu dormirei sobre a moto e acabarei caindo, e posso me machucar ou sair desta para outra”.

Senti-me culpada, pois nem os velhinhos da quadra reclamam. Respondi-lhe: “Tudo bem, mas eu nem velhinha vou ficar; morrerei antes de passar tantas noites acordada”. Ele sorriu e declamou o poema de Pinheiro Neto do livro “Poemas Reunidos”: João nasceu. João cresceu. João saiu. João brincou. João correu. João jogou. João perdeu. João achou. João gostou. João amou. João sofreu.

Calada e sem resposta, subi as escadas do prédio e voltei para o meu apartamento sonolenta. Deitei-me na cama e dormi?