A história de Aline (nome fictício) começa com abandono, negligência e violência. Aos 16 anos, ela foi mandada para um abrigo, assim que os pais descobriram a gravidez da filha. Ao completar 18 anos e com um filho pequeno nos braços, aceitou inocentemente a primeira proposta de emprego que apareceu e foi aí que o ciclo de violência começou.

“A proposta era para trabalhar na casa dele, cuidando de seu irmão que tinha deficiência. Mas no primeiro dia já fui violentada. Ele tirou meu bebê dos braços e me bateu. Essa situação se repetiu por anos”, relembra.

A violência era diária, e na frente do filho de Aline, que por muitas vezes ajudou a mãe a se recompor. Morando em uma casa cheia de grades, numa espécie de sítio, as pessoas nunca desconfiaram. Quando ela precisava sair de casa, era acompanhada pelo então “companheiro”.  “Eu apanhava calada porque precisa me manter e dar comida para meu filho”, desabafa.

Foram quatro anos de abusos e sofrimento. Dos estupros, duas crianças foram geradas. “Quando menos esperava, me via grávida. Quando estava grávida de oito meses do terceiro filho, no meio de uma situação de espancamento entrei em trabalho de parto, quase tive meu filho em casa”. Foi dessa vez que, no hospital, o médico desconfiou das agressões e prometeu ajudá-la, mas sem sucesso.

 

Fuga

 

O que mantinha Aline forte eram as três crianças que dependiam dela. O homem por diversas vezes ameaçou machucá-las, então a jovem não cogitava fugir. No entanto, desorientada e cansada de tanto ser machucada, em uma oportunidade ela conseguiu escapar.

Teve de morar na rua, por onde permaneceu por três anos. Como perdeu a memória, pouco sabia de si. Após esse período, uma jovem a ajudou. Tirou Aline da rua, ofereceu um emprego e ela recomeçou sua jornada.

Depois que voltou da rua, Aline se restabeleceu, comprou uma casa e voltou a trabalhar, e assim que oportunizou que um novo homem entrasse em sua vida, acabou encontrando a violência mais uma vez. “Eu nunca encontrei um homem bom. E depois de ser agredida em muitos relacionamentos, eu tinha vergonha de contar às pessoas”, justifica.

 

Apoio

 

No entanto, em 2015, depois de ser brutalmente espancada pelo novo companheiro, ela resolveu pedir ajuda a uma vizinha. “Nessa oportunidade, enquanto estava sendo cuidada por minha amiga, as profissionais do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) vieram me procurar, pois o enteado do meu companheiro não estava indo para escola, e elas vieram verificar a situação”, relata.

“Ao me verem daquela forma, questionaram o que tinha acontecido. Eu não tive coragem de contar, mas minha amiga falou. Ela deu meu grito de liberdade, o primeiro passo para o meu empoderamento”, define.

Depois de identificada a situação, Aline iniciou todos os procedimentos de apoio junto ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), de Içara. “Nos primeiros atendimentos, o companheiro vinha junto, nós atendíamos os dois. Depois que romperam definitivamente, o atendimento continuou com a Aline”, lembra a assistente Social Daniela Militão.

 

“A dor da alma dói mais que qualquer chute, tapa ou pontapé”, diz a vítima

 

Foram quatro anos de acompanhamento no Creas. Aline viveu uma verdadeira transformação. Livre das dores físicas, a içarense faz questão de frisar que o que resta do período violento em que viveu são as marcas da alma.

“A dor da alma dói mais que qualquer chute, tapa ou pontapé. O medo ainda segue nos rondando, principalmente quando chega a noite, mas precisamos superar diariamente. Desejo a todas as mulheres que não tolerem o que eu tolerei, nada justifica a violência, denunciem e tenho certeza que serão acolhidas como eu fui. No CRAS fui ouvida com atenção, tempo, considero elas a família que nunca tive”, afirma.

Resultado das agressões que a acompanharam durante boa parte da vida, ela foi diagnosticada com depressão e com Síndrome de Borderline.

Com o auxílio da internet, Aline conseguiu reencontrar os três filhos. Duas das crianças hoje estão adotadas. Uma menina de 17 anos segue abrigada. Os dois – hoje adolescentes – que nasceram da violência, também foram violentados pelo pai no período em que Aline ficou na rua.

 

Mais de 80 casos são acompanhados

 

Fazer com que as políticas públicas cheguem a todas as vítimas deve ser um dever de toda a comunidade. Em Içara, as mulheres que sofrem violência física ou psicológica têm à disposição os serviços do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), que conta com uma equipe interdisciplinar de psicólogos, assistentes sociais e advogados.

A assistente social do Creas, Daniela Militão, lembra que em 2019, o município registrou o primeiro caso de feminicídio. Após agredir e assassinar a companheira no bairro Barracão, o homem ainda apresentou uma versão fantasiosa à polícia, sustentando que a vítima havia cometido suicídio e permanecera desacordada por dias em razão do abuso de medicamentos. Constatada a causa da morte, porém, acabou preso.

Segundo a profissional, atualmente, 82 içarenses vítimas de violência são acompanhadas pela equipe. Daniela lembra que casos de violência contra a mulher podem ser denunciados pelo Disque 100 ou pelo número do Creas: 3431- 3572.

“Aquela cultura criada no Brasil de que em briga de marido e mulher não se mete a colher é errônea. Tanto a vítima quanto alguém que presencie casos de violência podem entrar em contato com o setor que prestaremos os devidos esclarecimentos e acompanhamento”, coloca.

Daniela ainda ressalta que os casos de violência estão presentes em todas as classes sociais, envolvendo mulheres, crianças e idosos. “O Governo de Içara, por meio da nossa secretaria, presta um serviço de amparo para todas as mulheres que sofrem violência. Esses serviços são fundamentais para proporcionar dignidade e segurança a essas mulheres, evitando que situações piores aconteçam”, completa a secretária de Assistência Social, Habitação, Trabalho e Renda, Fabiana do Amaral.